domingo, 3 de janeiro de 2010

O CUIDADO DE SI COMO PRINCÍPIO DA SAÚDE

Heraldo Simões - Educador Físico


Este breve texto apresenta reflexões acerca das idéias de Michel Foucault, sobre o cuidado de si, expostas em seu livro A Hermenêutica do Sujeito. A noção de cuidado, que se alastrou por toda a cultura grega, surge da expressão epiméleia heautoû, que significa cuidado de si mesmo, o fato de ocupar-se de si, de preocupar-se consigo mesmo. Muitos filósofos comentam as relações entre o preceito conhece-te a ti mesmo e o cuidado de si.

Sócrates é um interlocutor da frase conhece-te a ti mesmo. Porém quando este preceito délfico surge, ele está interligado ao princípio do cuidado de si. A regra do conhece-te a ti mesmo, está baseado na idéia de que o sujeito deve não se esquecer dele mesmo, que tenha cuidado com ele próprio.

Epicuro repetia: todo homem, noite e dia, e ao longo de toda a sua vida, deve ocupar-se com a própria alma. Entre os cínicos, a importância do cuidado de si é fundamental. Sêneca afirma: quão inútil é ocupar-se em espetacular sobre os fenômenos naturais, devendo-se antes, dirigir o olhar para coisas imediatas que concernem a nós mesmos e para certas regras pelas quais podemos nos conduzir e controlar o que fazemos.

Antes de Sócrates, havia práticas antigas de manifestar o cuidado de si. Na Grécia arcaica os rituais de purificação, ritos necessários para o contato com os deuses, era uma prática comum. A concentração da alma era uma forma de meditação. A técnica do retiro, maneira de retirar-se, desligar-se, mas sem ausentar-se do mundo, era também muito realizada. Outra manifestação era a prática da resistência, ou seja, resistir a tentações e desejos.

Todas as práticas acima citadas faziam parte do cotidiano da civilização grega antiga e até hoje persistem como técnicas de autoconhecimento. Os pitagoristas já as realizavam. Também eram adeptos da preparação purificadora para o sono. Escutavam música, respiravam perfumes, praticavam o exame de consciência, lembravam-se do dia e dos erros cometidos, para então esquecê-los. Outra técnica utilizada pelo mesmo grupo era a provação, onde tentavam superar provações. Plutarco relata que os sujeitos deviam fazer exercícios pela manhã e após uma longa sessão eram expostos a banquetes imensos e deviam resistir a fome.

Platão atestava que o cuidado de si era reduzido a forma do conhecimento de si. Sócrates, no texto do Alcebíades aconselha: é preciso ocupar-se consigo mesmo. Foucault cita o texto de Eusébio de Cesaréia que afirma ser o conhecimento divino a condição para o conhecimento de si: para ocupar-se consigo, é preciso conhecer a si mesmo; para conhecer-se, é preciso olhar um elemento que seja igual a si, é preciso olhar-se em um elemento que seja o princípio do saber; e este princípio do saber é o elemento divino.

Uma gama de práticas se incorpora ao cuidado de si, entre elas o meletân, ligado ao verbo gymnázein, ou seja, exercitar-se, treinar-se. Os exercícios de ginástica e militares passam a ser considerados então formas do cuidar de si.

O cuidado de si, ao se expandir promove quatro formas de se expressar. A primeira é a atenção a si mesmo, estar atento a si; a segunda está ligada a existência, é o voltar-se para si; a terceira se refere às atividades particulares, entre elas as médicas & tratar-se, curar-se; jurídicas & reivindicar-se, liberar-se; e, as religiosas & cultuar-se, envergonhar-se, honrar-se; e a última forma de expressão trata das relações consigo mesmo, alegrar-se, ser feliz consigo, satisfazer-se.

Neste momento de expansão do cuidado de si, é importante relatar qual o momento de se dedicar ao ocupar-se. Os gregos chamam de hóra, momento da vida em que se deve ocupar-se consigo mesmo. O cuidado de si deve ser permanente, deve durar a vida toda.

Musonius Rufus, estóico, lembrava que é cuidando-se sem parar que se pode salvar-se, ocupar-se consigo é ocupação para toda uma vida, de vida toda. Perguntava Epicteto: De que modo viveis? Ocupai-vos verdadeiramente com vós mesmos?

Haviam também grupos de pessoas, que ao chegar a velhice, abandonavam seus bens materiais e dedicavam-se a cuidar de si próprios. Entre estes, Foucault cita o grupo dos Terapeutas, nas redondezas de Alexandria. Ter cuidado com a alma era o objetivo deste grupo.

Apesar de tudo o que foi exposto, Foucault nos alerta de que o cuidado de si não pode ser considerado uma lei universal. Afirma ser uma forma que só pode ser aplicada por um número limitado de indivíduos. É uma escolha de modo de vida e nem todos preferem fazê-lo.

Conclui-se que aqueles não praticantes do cuidado de si; por vários motivos, falta de coragem, força, resistência, condições materiais; são incapazes de perceber a importância da tarefa. Porém o princípio do cuidado de si está para todos. Epicteto afirmava que o preceito conhece-te a ti mesmo, estava gravado na pedra do centro do mundo civilizado, todo podiam vê-la e, por conseguinte, ler a mensagem; entretanto poucos o faziam. Assim acontece com o cuidado de si. Sócrates também incitava muitos jovens, porém poucos o ouviam Somente alguns serão efetivamente capazes de ocupar-se consigo mesmos. Foucault nos remete a reflexão quando cita que o apelo do cuidado de si só é ouvido por alguns, contudo ninguém está excluído de ouvir.

Fonte: Heraldo Simões é professor da Universidade Estadual do Ceará

2 comentários:

  1. Olá, Roberto. É ótimo saber que existe eco da filosofia (especialmente no que tange esta categoria explorada por Foucault - o cuidado de si) na fisioterapia. Meu nome é Edmur Paranhos. Sou fisioterapeuta no Rio de Janeiro e tenho estudado formas atualizadas de resgate desta categoria na minha prática fisioterapêutica. Acho que temos que nos juntar. Não sei por aí pelo sul (imagino que esteja no sul) mas por aqui não costumo esbarrar em fisioterapeutas com esta característica. Só colocaria um comentário sobre o que foi redigido: até onde entendi, não é que Foucault tenha afirmado que o cuidado de se 'só pode' ser aplicado por poucos, mas que geralmente é aplicado por poucos. Na verdade ele defende, no momento em que levanta a categoria 'salvação' no curso de 1982, publicado no livro A Hermenêutica do Sujeito, que o cuidado de si está ao alcance de todos, ou seja, todos podem, ainda que, no entanto, apenas alguns poucos, de fato, experimentam. Acredito que isto se deva ao fato de que para o acesso à cultura de si são necessárias práticas de si que só podem surgir mediante mudanças na espiritualidade do sujeito, coisa que, segundo o que compreendi deste estudo, está um pouco distante do pensamento moderno, este relacionado com as propostas de entendimento do sujeito cujo marco Foucault apelida como momento cartesiano.
    De qualquer forma foi ótimo me deparar com este texto, sobretudo pelo fato de ver que a fisioterapia tem se preocupado, ainda que timidamente, com questões que trafegam para além das preocupoações técnicistas.
    Parabéns e sigamos em contato.
    Edmur Paranhos

    ResponderExcluir
  2. Edmur
    Agradeço o seu comentário e também partilho do seu pensamento no que tange a questão "geralmente aplicado por poucos mas que de fato apenas poucos experimentam".
    Infelizmente situação bem distante da nossa realidade, aqui no sul também.
    Considero este texto bastante interessante.
    Sigamos em frente e em contato.
    grande abraço
    Roberto Quintana

    ResponderExcluir